domingo, janeiro 21, 2007

A crônica? Ora, a crônica...

Desde muito jovem, através da coleção "Para Gostar de Ler", sou fã incondicional desse estilo leve, despojado e multifacetado que é a crônica. Meus autores favoritos são Fernando Sabino, Ruben Alves, Carlos Drummond de Andrade, Luis Fernando Veríssimo, entre muitos outros, que dariam uma lista enorme e um post só com ela. Escrevi várias, algumas por obrigação e outras por prazer. Esta que publico aqui foi uma das últimas, escrita ainda em Salvador, em março de 2005.

O Tele-Martírio

Rapaz...

Está ficando cada vez mais difícil de ser atendido e entendido por esse pessoal que trabalha em telemarketing. Se bem que, muitas vezes, a culpa não é do(a) operador(a), mas do sistema deficiente e precário que foi instalado para realizar o atendimento “eletrônico”.

O Zé, um amigo meu, ligou outro dia para um desses serviços de atendimento de uma prestadora de entregas:

- Dias & Dias Parado, boa tarde, Simone ramal 1313 às suas ordens!

- Boa tarde, eu estou com um probleminha. É uma encomenda que eu mandei através de vocês, lá pra meu primo Indalécio em Congonhas do Campo, interior de Minas.

- Pois não, senhor, qual é o problema?

- Bom, eu mandei pra ele quatro queijos bem embalados, conforme mandavam as instruções do seu folheto. E até agora ele não recebeu os queijos.

- E qual a data do envio, senhor?

- 22 de agosto...

- Puxa, faz tempo mesmo!

- ... de 2000!

- Como? O senhor enviou a encomenda no ano passado e ele ainda não recebeu?

- Pois é. Aliás, esta já é a décima terceira vez que ligo para vocês e cada hora me dão uma desculpa diferente. Ah, também acho que já falei com todas vocês aí do atendimento: a Rosângela, a Cristina, a Márcia, a Suzana...

- A Suzana não trabalha mais aqui.

- Que pena, passei mais de vinte minutos conversando com ela sobre molho de macarrão e queria até trocar algumas receitas de família que tenho. Você sabe o telefone dela?

- Não senhor. – desculpou-se a atendente.

- Bom, vamos ao que interessa. Onde você acha que colocaram meus queijos, isto é, os de meu primo, porque depois que eu mandei pra ele já podem ser considerados como dele.

- Bem, senhor – tentou se esquivar a moça, certa do tamanho da encrenca que tinha do outro lado da linha -, eu não sou a pessoa mais indicada para lhe responder a essa dúvida, mas...

- Não!!!

- Senhor!?

- Não, pelo amor de Deus! Não me mande de volta para o computador! Antes de você me atender eu passei 45 minutos escutando todas as mensagens da empresa, todas as musiquinhas e todas as promoções deste e dos próximos três meses!

- Mas senhor, eu preciso encaminhá-lo para o setor competente, para que suas dúvidas sejam esclarecidas.

- E qual dos vinte e três setores você acha que vai me esclarecer? Sim, porque eu conheço já de cor e salteado os nomes de todos os setores e seus respectivos responsáveis, por exemplo: tem o Mojica da expedição, o Moraes da embalagem, o Josias do transporte...

- Bem, senhor – vacilou mais uma vez a já temerosa Simone, que a essa altura devia estar olhando para os lados, em busca de socorro -, a situação está mesmo complicada...

- Alvíssaras! Alguém reconheceu afinal o óbvio! Você deve ser profeta, minha filha, pois o Nelson Rodrigues dizia que só os profetas enxergam o óbvio!

- Senhor, me desculpe.

- Não tem do que se desculpar, eu sei que a culpa não é sua. Mas quando eu descobrir de quem é...

- Mas já faz tanto tempo desde essa remessa...

- Exatamente. Aliás, eu acho que meu primo vai ganhar gato por lebre.

- Como assim?

- É que eu mandei quatro queijos tipo parmesão, mas pela demora eu acho que ele vai receber é quatro gorgonzolas mesmo!

Simone não pôde segurar um risinho diante da piada do Zé.

- Pode rir, pode rir, minha filha, que já dizia o velho deitado: rir para não chorar.

Naquele pequeno instante de descontração, o Zé cometeu um erro fatal, pois Simone disparou à queima-roupa(ou a queima-fone):

- Acho que já sei quem pode ajudá-lo. Só um instante por favor.

- Nãããããããããoooooooooooo!!!!!! – ainda teve tempo de gritar o Zé, antes de ser enviado de volta para o limbo telefônico e para as mensagens pré-programadas do computador da auto-atendimento.

Zé me contou isso um mês depois do ocorrido.

- Pois é, companheiro, caí no vácuo do telemarketing e desisti de ligar para eles.

- Mas e os queijos, Zé? Que fim será que levaram?

- Isso talvez nunca venhamos a saber, meu amigo. Talvez tenham feito a alegria de um bando de ratinhos órfãos, famintos e sozinhos, depois de perderem a mãe rata para algum gato faminto.

- Você dramático e teatral como sempre, hein, Zé?

- Fazer o que? Eu me consolo na fantasia para não chorar na realidade.

- E o seu primo? Ainda tem vontade de mandar algum queijo para ele?

- Não, eu fiz diferente. Entrei na internet, comprei duas dúzias dos mais variados queijos em uma rede grande de supermercados, com filial lá em Congonhas também, e dei o endereço da casa dele para a entrega.

- E ele recebeu?

- No dia seguinte. Ficou pasmo! Disse que era engano. Que apesar de ser mineiro, ele nunca compraria tanto queijo de uma vez só. Mas eu tinha deixado instruções para que dissessem quem foi que mandou e ele me ligou na mesma hora.

- Alô, Zé?

- Indalécio?

- Homem, você é maluco? Prá que tanto queijo? Parece até piada sobre mineiro!

- Bom, você lembra daqueles quatro queijos que eu disse que ia te mandar ainda no ano passado?

- Lembro sim. Achei que você tinha esquecido e nem me importei mais com isso.

- Pois é, eles renderam juros, graças à poupança chamada auto-atendimento?

- Come é que é?

Deixa prá lá, primo. Bom proveito e não coma tudo de uma vez só, hein?



Um comentário:

Cleber Campos disse...

Ótima crônica, Lauro. Ter um blog é ótimo, não é? Divulgar aquelas nossas coisas que estavam engavetadas e esquecidas é um ótimo exercício e um incentivo a dar continuidade na produção. Abração